Um clique no celular ou no computador e a promessa de uma vida fácil e financeiramente estável surge na tela. Um tigre risonho e colorido parece incentivar mais lances: tudo depende do apostador. O "Tigrinho", o "Aviãozinho" e dentre outros jogos de azar na internet vêm formando um número crescente de vítimas, presas em um labirinto de dívidas, problemas familiares e perda do autocontrole.
Atenção! O texto a seguir pode conter gatilhos emocionais. Pessoas com problemas de dependência ou vício em jogos podem recorrer a atendimento psicológico e psiquiátrico. Se, aliado a isso, você tem pensamentos suicidas, busque ajuda. O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece apoio através de chat na internet ou pelo telefone 188.
Popularização e Falta de Regulamentação
Popularizados no Brasil desde o isolamento social da pandemia, esses jogos ainda carecem de regulamentação. Agindo nas brechas da lei, as plataformas estimulam o investimento de pequenas somas para multiplicá-las por até centenas de vezes. No entanto, isso raramente acontece, gerando uma comunidade cada vez maior de perdedores.
O Diário do Nordeste trouxe o seguinte caso a publico:
A cearense Ângela Maria, de Missão Velha, na região do Cariri, foi uma dessas vitimas que caíram no golpe. Atolada em dívidas estimadas em mais de R$300 mil, Ângela tirou a própria vida. Para conscientizar outros jogadores sobre o alto risco dessas apostas, sua irmã, Jessica Lobo, decidiu abrir o perfil "A outra face do Tigrinho". Três grupos online conduzidos pela "ativista contra os jogos", como se define, reúnem quase mil pessoas de todo o Brasil.
Entre os membros desses grupos estão "a irmã de um rapaz que também perdeu a vida" e "um policial da Bahia que perdeu mais de R$1 milhão e hoje enfrenta processos judiciais". Para Jessica, o trabalho voluntário é uma forma de honrar a memória da irmã e de combater "o julgamento de quem não passa por isso".
"Vejo que ainda tem muita gente que, vez ou outra, acaba recaindo e volta completamente destruído. Isso me dói bastante", lamenta Jessica. "Infelizmente, esse é um vício como qualquer outro, porém mais prejudicial, pois não dá sinais, não dá alerta e está nas mãos a todo momento".
Relatos dessa forma não são incomuns nos grupos dos Jogadores Anônimos (JA) em Fortaleza. Lá, há quem tenha perdido mais de R$200 mil em apostas online e, agora, ajuda outros jogadores viciados em cassinos virtuais e Jogo do Foguete. A reportagem do Diário do Nordeste também ouviu relatos de um marido que precisou mudar a senha do aplicativo de banco para que a esposa deixasse de gastar dinheiro nas apostas.
O Perigo Silencioso dos Jogos de Azar
A psicóloga Beatriz Austregésilo, pós-graduada em Dependência Química, explica que os jogos mexem com o sistema límbico (tem a função psíquica de avaliar afetivamente as circunstâncias da vida, realizar a integração do sistemas nervoso, endócrino e imunológico e organizar uma reação adequada), estrutura cerebral relacionada às recompensas. Ganhos e vitórias lançam neurotransmissores ligados à sensação de prazer nas vias dopaminérgicas(relacionado à dopamina) da mesma forma que uma dependência química: você tem um pico, é recompensado e quer de novo porque a sensação é muito boa - porém, passageira.
"Quanto mais rápido o efeito, mais chances de dependência. E quando falamos em jogos eletrônicos, não são partidas de 40 minutos para saber se vou ganhar ou perder. Na palma da mão, em 5 minutos, consigo jogar. É muito prático para dar certo ou para dar errado", exemplifica.
Vinícius Andrade, médico colaborador do Ambulatório de Transtornos de Impulso da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Comissão das Adicções da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), alerta que a compulsão envolve buscar várias vezes o mesmo comportamento, apesar da consciência dos prejuízos relacionados. A dependência gera falta de controle, incluindo "sintomas de fissura" que podem levar a taquicardia, sudorese e aumento da velocidade do trânsito gastrointestinal - similares a quadros de dependência de opioides.
Impactos do Vício
O vício pode impactar a vida diária em diversos âmbitos:
- Saúde mental: associado à depressão, ansiedade, abuso de álcool e tabaco, baixa autoestima e comportamentos impulsivos.
- Problemas físicos: dores musculares, lesões por esforço repetitivo e problemas de sono.
- Relações interpessoais: conflitos familiares, problemas conjugais e dificuldades de comunicação.
- Desempenho profissional: falta de concentração e baixo rendimento.
- Desenvolvimento cognitivo: especialmente em crianças e adolescentes, pode dificultar o desenvolvimento de habilidades sociais, emocionais e acadêmicas.
A Arquitetura do Vício
Desde 1980, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece o transtorno de jogo como doença. No Brasil, estima-se que 1% da população possa desenvolver a patologia. "À medida que a gente aumenta a oferta, aumenta a porcentagem da população que pode ser vulnerável", explica Vinícius.
Não é mais incomum encontrar publicidades de jogos eletrônicos nas redes sociais, e o número parece crescente. Nos últimos meses, seguidores denunciaram que milhares de perfis de “tigrinhos” passaram a enviar solicitações de contato. Em pesquisas básicas, também não é difícil encontrar perfis e lives no tiktok, facebook e instagram divulgando macetes para multiplicar o dinheiro.
Mecanismos da Compulsão
Artur Franco, doutorando em Ciências da Computação e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), acredita ser necessário diferenciar os jogos tradicionais dos "sistemas de aposta". "A indústria de jogos de azar se vende como um jogo. Esse elemento visual do ícone e do mascote é uma forma de enganar. É uma ilusão você apostar, fazer uma escolha e rapidamente ter uma resposta de sim ou não".
Mesmo que haja regulamentação, Franco acredita que esses jogos ainda seriam danosos:
"Eles não são necessários, a sociedade não tem uma demanda disso. Não existia um consumo até pouco tempo. Nós vivíamos muito bem sem ter esse tipo de plataforma, que deveria ser proibida", defende.
A Vulnerabilidade da População
Os jogos costumam começar pela Fase da Vitória, com ganhos sucessivos e animadores. A Fase das Perdas vem em seguida, quando é ativado um otimismo não realista: a pessoa percebe que há algo errado, mas decide que conseguirá contornar a situação se jogar mais. O agravamento leva à Fase do Desespero, quando os recursos financeiros acabam e o jogador enfrenta sensação de fracasso, culpa e vergonha.
A psicóloga Beatriz Austregésilo reforça que não é possível definir exatamente quem será mais vulnerável ao transtorno de jogos, pois ele depende de influências genéticas, comportamentais e de desenvolvimento. O psiquiatra Vinícius Andrade defende treinamentos adequados a profissionais da rede pública de saúde para identificar e lidar com essa condição.
Além disso, Andrade sugere a criação de um conselho interdisciplinar para discutir os aspectos sociais e de saúde do transtorno.
"A regulação pode ser um caminho para intervenções mais adequadas, como já vimos com o álcool e o tabaco, em que na embalagem mesmo você tem fotos das consequências. São possibilidades para tentar auxiliar as pessoas mais vulneráveis a esse quadro”, conclui.
O perigo dos jogos de azar online é real e tem afetado vidas de maneira devastadora as pessoas no âmbito de suas vidas sociais, trabalhos e até em relacionamentos.
Essa matéria foi baseada em uma publicação do Diário do Nordeste. O intuito aqui é alertar sobre os problemas que os jogos podem causar nas pessoas. Em nenhum momento alteramos ou manipulamos os dados originais.
Reportagem montada por: Lucas Gomes, Vicente Neto e Andreia Costa
Fonte: Correio24horas | Terra | Folha BV